Gabryele Moreira começou a se interessar por física durante um curso pré-vestibular que fez na periferia de Salvador, no Nordeste do Brasil, em 2011. Dois anos depois, foi admitida na Universidade Federal de Sergipe, em São Cristóvão, por meio de um sistema de cotas para minorias étnico-raciais. e iniciou seus estudos de graduação em física médica. Ela foi apoiada por bolsas de moradia e alimentação, que foram “essenciais para que eu continuasse na universidade e acompanhasse os estudos”, afirma.
Mas seu caminho para a pós-graduação foi mais desafiador, porque não havia uma política de ação afirmativa semelhante quando ela estava se candidatando ao mestrado em tecnologia nuclear no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares de São Paulo, em 2018. “Lembro-me de recorrer a Vídeos no YouTube para tentar aprender inglês e se preparar para o teste de proficiência em língua estrangeira do processo seletivo do mestrado”, afirma. “Não tive oportunidade de fazer disciplinas durante a graduação.”
Ela foi aceita, tornando-se naquela época a única negra do programa. “Eu pude me ver nos outros quando estive em Sergipe, mas em São Paulo percebi que pessoas como eu eram minoria na pós-graduação, principalmente em áreas como energia nuclear”, diz Moreira.
Lento para se adaptar
Histórias como a de Moreira — e estudos divulgados nos últimos anos — indicam que as políticas de ação afirmativa ainda não se tornaram dominantes no ensino de pós-graduação em ciências no Brasil. “Ainda há muito terreno a ser conquistado”, diz Anna Venturini, pesquisadora de ciência política do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, em São Paulo, que estuda políticas de ação afirmativa em programas de pós-graduação desde 2014.
A queda acentuada nas matrículas de pós-graduação no Brasil sugere um declínio no interesse em carreiras científicas acadêmicas
Mais da metade dos 203 milhões de habitantes do Brasil se identificam como negros, mestiços ou indígenas. Mesmo assim, os brancos representam atualmente 90% dos cientistas brasileiros – proporção 12 vezes maior que a de negros, mestiços e indígenas juntos, segundo estudo realizado por pesquisadores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. “Esses grupos são minorias em quase todas as áreas das ciências exatas”, diz a coautora Marcia Rangel Candido.
Para tentar corrigir estas desigualdades e promover a equidade em grupos minoritários historicamente marginalizados, os programas de pós-graduação começaram a implementar políticas de acção afirmativa na década de 2000, algumas por iniciativa própria e outras como um requisito ao abrigo de leis estaduais e resoluções universitárias. O movimento ganhou força em 2016, quando o governo passou a exigir que as instituições federais de ensino superior apresentassem propostas de medidas para incluir pessoas negras, pardas, indígenas e com deficiência em seus programas de pós-graduação.
Com isso, o percentual de programas de pós-graduação no Brasil com ações afirmativas passou de 26% em 2018 para 54% em 2021, segundo análise de 2022 de Venturini e seu colega. No entanto, essas iniciativas têm sido distribuídas de forma desigual pelos campos académicos.
Específico do campo
A expansão voluntária da acção afirmativa nos últimos anos tem sido impulsionada principalmente pelas ciências humanas e sociais, nas quais 36-44% dos programas de pós-graduação adoptaram estas políticas por sua própria iniciativa. “Historicamente, os pesquisadores da área de humanidades tendem a ser mais propensos a pensar em estratégias para mitigar as desigualdades no acesso ao ensino superior, porque têm uma longa tradição de pesquisa sobre essa questão”, diz Jaqueline Gomes de Jesus, psicóloga negra transgênero da Federal Instituto do Rio de Janeiro e o primeiro gestor do sistema de ações afirmativas para estudantes negros de graduação da Universidade de Brasília.
Universidades rejeitam declarações sobre diversidade após decisão da Suprema Corte dos EUA sobre ação afirmativa
Por outro lado, os programas de pós-graduação em ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM) são os menos propensos a criar iniciativas de ação afirmativa, de acordo com a pesquisa realizada por Venturini e seu colega. Apenas 9,5% dos programas de pós-graduação em engenharia e 5,6% dos programas de pós-graduação em ciências agrícolas do Brasil adotaram voluntariamente ações afirmativas nas últimas décadas.
Venturini diz que “uma cultura de meritocracia conservadora” pode estar a contribuir para a resistência à implementação de ações afirmativas em programas STEM. “Os processos de admissão para esses programas atribuem menos valor à formação dos candidatos e presumem que os mais qualificados são simplesmente aqueles com as pontuações mais altas nos testes”, diz ela. “A crença de que as políticas de ação afirmativa são prejudiciais aos ‘candidatos mais capazes’ é altamente prevalente em programas de ciência dura.”
Outros investigadores temem que os estudantes admitidos através de políticas de acção afirmativa possam estar menos preparados e, portanto, não terminarem as suas teses a tempo ou não publicarem em revistas de alto impacto, o que poderia, em última análise, afectar a forma como as agências de financiamento percebem a qualidade e o estatuto de um programa.