A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) decidiu que El Salvador violou os direitos humanos de uma mulher salvadorenha a quem foi negado o aborto, apesar de sua gravidez de alto risco em 2013.
O tribunal ordenou ao país centro-americano que adote “todas as medidas regulatórias necessárias” para que os médicos sejam autorizados a interromper “gestações que representem risco para a vida e a saúde da mulher”.
A decisão anunciada esta sexta-feira também “recomendou” que El Salvador alterasse as suas leis para permitir o aborto “em casos de incompatibilidade fetal com a vida fora do útero, bem como onde haja risco para a vida e um risco grave para a saúde e pessoal”. integridade da mãe”.
O país tem uma das leis antiaborto mais restritivas do mundo: o procedimento é proibido em todas as circunstâncias e as mulheres podem até ser acusadas de homicídio qualificado, com penas de 30 a 50 anos de prisão.
Agora, os activistas esperam que o veredicto possa abrir caminho à descriminalização do aborto em El Salvador e estabelecer um precedente importante para a América Latina, onde o procedimento é proibido em todas as circunstâncias noutros seis países.
Beatriz (seu sobrenome não consta no processo) tinha 22 anos e vivia em extrema pobreza quando, menos de um ano depois de dar à luz o primeiro filho, descobriu uma nova gravidez. Ela sofria de lúpus, artrite e insuficiência renal, e os médicos logo identificaram que o feto tinha anencefalia e não sobreviveria fora do útero.
Os médicos recomendaram o aborto para salvar sua vida, mas não puderam fazê-lo porque, como o procedimento é proibido no país desde 1997, os profissionais de saúde que o realizam podem pegar até 12 anos de prisão.
Beatriz recorreu ao Supremo Tribunal Federal, que negou o seu pedido. O caso atraiu atenção internacional e uma decisão da CIDH obrigou o Estado salvadorenho a permitir o procedimento. El Salvador ainda recusou e só permitiu que ela fosse submetida a uma cesariana prematura de emergência depois que ela ficou gravemente doente; o feto morreu cinco horas depois.
Em 2017, Beatriz morreu após se envolver em um acidente de carro. Havia uma crença entre os activistas de que a deterioração da sua saúde em 2013 tinha de alguma forma contribuído para a sua morte, mas a decisão da CIDH concluiu que “não há provas claras e convincentes que estabeleçam uma ligação causal” entre os dois casos.
Beatriz tornou-se um símbolo de como a lei antiaborto de El Salvador colocava em perigo a vida das mulheres. Ativistas feministas e defensores dos direitos humanos levaram o seu caso à CIDH.
“É um momento histórico, mas também de esperança”, disse Mariana Moisa, activista dos direitos das mulheres e fundadora da Coligação de Cidadãos pela Descriminalização do Aborto. Ela acredita que a decisão estabeleceu um “mínimo” – que o aborto deve ser permitido pelo menos nos casos em que a vida da mulher esteja em risco – “que nos permite avançar em países onde as leis são mais restritivas e também onde há retrocessos e uma tentativa de reverter o progresso”.
Morena Herrera, outra proeminente ativista pelo direito ao aborto em El Salvador, postou um vídeo dizendo: “A justiça foi feita para Beatriz e sua família” e que a decisão “ampliou os horizontes de esperança para meninas, adolescentes e mulheres em nosso continente, porque agora imaginamos um presente e um futuro melhor para todos”.
O tribunal decidiu que El Salvador é responsável pela “violência obstétrica” e pelas violações da “saúde, do acesso à justiça, dos direitos, da integridade pessoal, da vida privada e do direito de viver uma vida livre de violência” de Beatriz. A decisão determina ainda que o país pague uma indemnização – em valor a definir – à mãe, ao padrasto, ao viúvo e ao filho de Beatriz.
A CIDH faz parte da Organização dos Estados Americanos, composta por 35 países, da qual El Salvador é membro. Na prática, não há obrigação direta de o país alterar as suas leis.
Desde 2022, o país está sob um controverso estado de emergência para combater gangues, implementado pelo seu presidente autoritário e conservador, Nayib Bukele, que tem afirmado repetidamente que não tem intenção de alterar a atual lei do aborto no país.
“O fato de o presidente não pretender descriminalizar não significa que as mulheres vão deixar de fazer aborto, certo?” disse Moisa, que acredita que a decisão pode contribuir para a descriminalização do aborto em El Salvador no futuro.
“A decisão nos coloca socialmente em uma conversa sobre o aborto, para tirá-lo do tabu, para entender que é uma questão de saúde pública”, disse ela.